terça-feira, 17 de julho de 2012

E as obras do quarteirão?



Não é somente pela tela da televisão ou pelas fotografias de capas de jornal que percebemos que Fortaleza está em obras. Basta abrir a janela do quarto, ou as cortinas da sala de estar para notar isso ao redor da vizinhança mesmo. Somos conduzidos a olhar para aquários, centros de eventos, trilhos de metrô, mas não podemos esquecer do conjunto imenso de prédios que parece brotar do chão, do enxame de automóveis que a cada dia entope mais o trânsito e polui o ar. Isso sem contar o agravamento dos ruídos de construção, britadeiras, caminhões, tratores, que maltratam os ouvidos e perturbam o sossego.

Nossa cidade realiza obras às pressas, como se fosse uma noiva ansiosa e atrasada para o próprio casamento, na expectativa de que a "loira desposada do sol" saia do caritó de vez. Fortaleza compete com as outras capitais solteironas para ver quem é que vai ficar ou não para titia ("olha como meu Castelão está mais adiantado que o seu"). E prepara-se a cerimônia para receber convidados ilustres de fora, cartolas do futebol mundial, atletas, amantes do esporte que virão para cá não para conhecer a cidade de fato, mas para filar a boia, saborear os quitutes da festa de recepção. (Haverá uma estação de metrô do aeroporto para o estádio, para que os "hóspedes" nem precisem passar pelos "aposentos dos nativos" para cumprimentar a família da noiva, os cidadãos fortalezenses).

Fortaleza segue como aquela princesa iludida esperando pelo príncipe encantado, encarcerada no alto da torre de marfim. Sonha em se tornar uma cidade desenvolvida, mas a mentalidade dos governantes não permite que isso aconteça. O povo não tem acesso a uma educação crítica e de qualidade, e fica sem opção, ainda que se apresentem dez candidatos para assumir a prefeitura, e uma penca de vereadores que legislam para aumentar o próprio salário.

Não se questiona se essas obras ditas milagrosas não passam de uma maquiagem no cenário urbano, se a cidade não está apenas indo para o banheiro para retocar o pó no rosto. Em 2014, durante um mês, o país inteiro vai respirar futebol, e se esquecerá completamente que ainda temos graves desigualdades sociais, uma educação deficitária, problemas na preservação do meio ambiente, na saúde, na segurança pública e na cultura.

Essas obras prometidas para a Copa do Mundo trarão melhorias profundas na qualidade de vida da população? Ou são mesmo só para impressionar os turistas e os gringos? São investimentos no futuro ou serão dívidas difíceis para quitar no médio e longo prazo? Essas são perguntas que ficam a respeito da finalidade dessas obras, se a cidade deve ser arrumada por uma rápida faxina para eventos internacionais ou cuidada todo dia por e para quem nela habita. O Brasil já foi sede em 1950 de um torneio internacional de futebol e nem por isso resolveu todos os males socioeconômicos. Lembremos disso neste ano de eleições e em 2014 principalmente.


 
Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador

Texto e fotos: Marco Leonel Fukuda

Leia mais:

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Pelo fim da educação surda

Os sons da descoberta da música presentes desde a educação básica

A música, a partir da lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, passa a ser uma disciplina obrigatória no currículo da educação básica no Brasil. Sancionada pelo ex-presidente Lula, essa norma atualiza a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - lei nº 9394/96), dando um prazo de três anos para as escolas brasileiras se adaptarem à essa exigência. Em termos práticos, isso coloca o ensino da arte musical no mesmo patamar de valorização pedagógica de outras disciplinas como Língua Portuguesa, Matemática e Estudos Sociais para os alunos da educação infantil e do ensino fundamental.

Vivemos um momento em que se faz necessário repensar o sistema educacional brasileiro. Nossos cidadãos têm acesso a uma formação plural, sensível e humanística? Esse questionamento envolve também o espaço destinado às expressões artísticas. Não podemos acreditar que a música seja um remédio milagroso para a crise estrutural do ensino no nosso país, tampouco podemos continuar relegando-a à posição de fundo ambiental do currículo escolar.

Essa arte sonora volta para reavivar o antigo sonho de Heitor Villa-Lobos de dar oportunidade para expressarmos o potencial e a musicalidade criativa do nosso povo. A partir desse avanço legislativo, a música se separa do bloco confuso e indefinido da Educação Artística, que, assim como a Educação Física, por muitos anos representaram papeis coadjuvantes nos currículos das escolas brasileiras.

Agora que é autônoma, a música exigirá educadores preparados para aplicarem didaticamente os conhecimentos musicais em sala de aula. Os professores de música desse novo momento histórico devem ser licenciados na área. O intuito, porém, não é fabricar músicos profissionais, cantores e instrumentistas técnicos, mas de dar ferramentas para afinar as vozes e os ouvidos, para aguçar a percepção auditiva dos estudantes, a fim de se relacionarem criticamente com os sons presentes na sociedade.

A música forma cidadãos mais sensíveis, capazes de apreciar e de se expressar sonoramente com consciência. Por isso a importância de estar presente na escola, desde a base do desenvolvimento humano, cívico e sócio-cultural. Sem música, a educação brasileira é surda, monótona e superficial. Agora, somente com ela, é que poderemos ter um processo educativo polifônico, cantável e orquestral.


Texto e foto: Marco Leonel Fukuda

Leia mais

- Com uma tarde repleta de música e de crianças, a Messejana nem pareceu tão distante - bastidores reportagem Revista Impressões Digitais UFC


Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador

terça-feira, 3 de julho de 2012

Sons que atravessam a cena

Design: Walmick Campos
Teatro

Na próxima semana, estreia a primeira temporada de Papilio - uma travessia, espetáculo de conclusão do Curso Princípios Básicos de Teatro CPBT/TJA turma Manhã 2011/2012, no Theatro José de Alencar, em Fortaleza. A peça, sob a direção de Juliana Veras, é um diálogo entre a poesia e a música, a realidade e o sonho, apresentando as metamorfoses pelas quais passamos na vida para superar nossos medos. Os personagens vivenciam situações-limite de incertezas e fragilidade, e o público é convidado a refletir sobre as máscaras do cotidiano que utilizamos para a conveniência social.

O título do espetáculo vem da palavra Papilio, que em latim significa "borboleta". O elenco participou coletivamente da criação dramatúrgica da peça, e é integrado por Ana Oliveira, And Listen, Georgea Nara, Irisvânia Maria, Jairo Reiges, Jinnye Melo, Keven Rocha, Marina Evelly, Kekel Abreu, Suy Melo, Tércio Aragão Brilhante e Ysnara Tainam.

Serviço
Papilio - uma travessia
Espetáculo de conclusão CPBT/TJA
11 a 15 de julho de 2012
Duas sessões diárias - 16h e 19h
Entrada franca
Theatro José de Alencar
CENA / Anexo - Sala de Teatro Nadir Papi Saboia
Praça José de Alencar, s/n
ou entrada lateral pela Rua 24 de maio, 600. Centro (Fortaleza/CE)


Foto: Marco Leonel Fukuda
Canto sentimental

Ana Oliveira, cantora e atriz do elenco de Papilio - uma travessia, tem participação em uma cena do espetáculo, em que seu personagem interpreta Melodia Sentimental de Heitor-Villa-Lobos (1887-1959) em ritmo de tango, no arranjo de Marco Leonel Fukuda.

Uma prévia sonora do espetáculo teatral que estreia na próxima semana em Fortaleza:




As canções de Villa-Lobos, em especial a Melodia Sentimental (da obra sinfônica "A Floresta do Amazonas", de 1958) e a Ária Cantilena das Bachianas Brasileiras nº 5, ficaram bastante conhecidas na voz da cantora lírica Bidu Sayão (1902-1999).


Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador



domingo, 1 de julho de 2012

Pombo Performático



Era uma tarde de quinta-feira na Avenida 13 de maio em Fortaleza, por volta de cinco horas. Eu estava na parada de ônibus em frente à Reitoria da Universidade Federal do Ceará esperando, como tantos estudantes, pela topic 03. Naquele dia, o transporte demorou mais do que de costume, e outras pessoas ao meu lado também aguardavam pacientemente pela chegada do ônibus. Era o feriado de Corpus Christi, mas o que eu vi foi uma ave singular se equilibrando na beira da calçada. Não era uma pomba branca, símbolo da paz e da espiritualidade cristã, mas um pombo daqueles ordinários e sujos. Porém, o modo dele de caminhar e de ciscar o chão prendeu a minha vista. Não tive nojo em vê-lo, como teria em outras circunstâncias. A performance do animal me despertou a curiosidade e me motivou a escrever.

O pombo caminhava com uma naturalidade espantosa pela rua. Não tinha medo das motos, nem dos carros que passavam rápido. No rastro deles, vinham ligeiras ventanias que assustariam outros pássaros. Mas não o pombo, que ciscava como se estivesse em um quintal espaçoso, ou avaliando cada prato da gôndola de um buffet ou de um self-service. Continuava tranquilo bicando o asfalto e a areia, recolhendo grãos de cuscuz e de arroz. Era um banquete de lixo e de restos de comida, de quem se farta e se delicia da nossa cultura de desperdícios. 

Era engraçado porque o pombo parecia sentir quando o semáforo fechava. E eu olhava de vez em quando para conferir se o meu ônibus não estava para chegar. Depois, por inúmeras vezes, voltei o olhar para a ave, e permaneci espectador daquele ato paradoxal e fantástico de tão cotidiano e incomum. Era só diminuir momentaneamente o fluxo de veículos, que ele descia novamente da calçada, e andava desajeitado até quase o meio da avenida. Passei a temer pela segurança do pombo, com aquela torcida interior que a gente tem para o trapezista não cair e se esborrachar no chão batido da arena do circo. 

O bico resistente do bicho batia direto na rua, palco de todo o breve espetáculo. Foi impressionante a capacidade seletiva dele, de saber distinguir a comida no meio de pequenas pedras, fuligem, grãos de areia e folhas. Enchia o papo de fragmentos moídos de milho, que ali dispersos não davam pistas de procedência. Indiferente ao meu estado de voyeur, ele desfilava satisfeito, totalmente acostumado àquilo, como se fosse algo rotineiro e previsível. Tinha até um certo ar irônico, arrogante, por sempre escapar ileso das investidas furiosas dos automóveis. Parecia imune a ser atropelado, à causa mortis de possíveis parentes ou amigos animais das ruas.  

Quando voltava para a calçada, tentava desviar dos pedestres, com medo. Tinha pavor de skatistas, de ser esmagado por aquele conjunto incompreensível de madeira e de duas rodas. Com habilidade, conseguiu escapar de prováveis pisadas e chutes de grupos de gente distraída. Foi se proteger debaixo da marquise da parada de ônibus, próximo à bicicleta do vendedor de doces. Mas permanecia agitado e faminto, sem parar de se mexer um instante sequer. O doceiro se abaixou para buscar uma vasilha vermelha, que estava debaixo da bicicleta de mesma cor. Abriu a tampa, puxou uma colher e jogou restos do almoço no chão. 

Estava  resolvido o enigma. Era daquela insuspeita vasilha vermelha de onde vinha o alimento do pombo naquela hora. O açucarado vendedor tinha por aquela ave o mesmo sentimento dos aposentados que vão aos parques distribuir migalhas de pão para os pombos. Com grãos de outros cereais, era solidário e piedoso para com o bicho, que também tira o sustento do que consegue na rua. O homem repartiu as sobras da marmita e provava das guloseimas que venderia em um dia de mais movimento.

Enquanto o meu ônibus não chegava, segui atento os passos daquele pombo performático. Para finalizar a apresentação, de repente, a ave tomou um impulso do chão, bateu as asas e voou, não mais de estômago vazio. Desapareceu no meio dos fios elétricos e dos galhos das árvores altas. Terminou o espetáculo com a  dignidade e a convicção de um artista para os dois únicos espectadores, o doceiro e eu. Deu uma vontade de bater palmas para o pombo, e até uma ponta de inveja, porque ele era o próprio meio de transporte, e chegaria bem antes de mim ao ponto de destino.
  

Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador


Foto: www.amareisempre.blogspot.com