segunda-feira, 1 de março de 2010

Por gentileza, Fortaleza - por Izabel Gurgel

"Gentileza gera gentileza

Na praia, quero ouvir o barulho do mar. No teatro, só o espetáculo. No cinema, o filme. Na sala de aula, a aula. Em casa, sons que não incomodem a vizinhança. Na praça, o buchicho das conversas. Nas igrejas, rezar baixinho: os deuses não são surdos. Deixar profissionais e pacientes atravessarem uma dura noite em hospital sem som de carro. No Passeio Público e no jardim do TJA, quero ouvir passarinhos. Vivo em Fortaleza. Quero viver em outra cidade: Fortaleza sem as parafernálias de som em automóvel.

Quero mais: calçadas livres, ruas limpas, iluminadas, transporte público decente.
Um dia tocado por “Bom dia” ao desconhecido que passa, movido a “Por gentileza”, “Com licença”, “Por favor” e “Muito agradecida”. Ainda que não saibamos, estamos exauridos pela grosseria cotidiana que não cessa de prosperar em Fortaleza.

Do ônibus ou da hilux, por gentileza, não jogue lixo na rua.
Não encontrar lixeira não é desculpa: leve um saquinho na bolsa.

Respeite o ciclista: para 7% da população, a bicicleta é o único meio de transporte.

Lembre-se: a vaga para deficiente é para portadores de deficiência...

A fila é para todos, todos temos pressa – ainda que não saibamos como inventamos uma vida assim. E não precisamos de lei para dar passagem aos velhos, às pessoas com crianças, com dificuldade de locomoção, às mulheres grávidas: é só se colocar no lugar do outro. Miúda, eu já sabia que ceder o lugar aos mais velhos, por exemplo, era uma regra que valia o tempo todo no ônibus, na fila...

Por gentileza, não buzine: se estou parada é porque engarrafamos a vida. É cada vez mais difícil o ir-e-vir mais banal. Vai para a balada, ao Centro ou ao estádio? Divida um táxi ou uma van com os amigos. Deixe o carro em casa. Nenhuma grande cidade do mundo, com uma rua que sabe viver, está baseada no automóvel particular. Precisamos mais de transporte público e sistema de ciclovias do que de estacionamento.

Se usa moto, use também capacete e, assim, em caso de acidente, não vai ocupar a equipe do IJF, que já tem um serviço imenso para ser feito. Faixa de pedestre tem função: é para dar passagem a quem anda a pé, qualificando o trânsito. Sim, somos milhares de pedestres na cidade.

Sobretudo, ao deitar e ao acordar, lembre-se: não existe só você no mundo.

Não grite; não chame o garçom ou a vendedora com um “Ei!”; saiba que muitas vezes seu celular pode ficar desligado e o mundo continuará girando.

Quero viver em Fortaleza assim: nos 365 dias do ano, com a civilidade dos dias extraordinários. Ainda ressoa o relato da amiga moradora da Santos Dumont que desceu a João Cordeiro a pé para o réveillon na praia, à vontade na rua, sem pânico em relação ao outro: sim, porque o medo incorporado é acionado a cada encontro com quem quer que seja. Paranóia urbana que (talvez) temos um certo prazer de cultivar, assim uma espécie de distinção social. Claro que construímos cidades assustadoras. Mas com mais de 350 mil pessoas passando pelo Centro diariamente, por exemplo, não dá para acreditar que se realiza 100% a equação: ir ao Centro + andar a pé = assalto.

É um alento saber do casal amigo que voltou do réveillon fazendo o caminho contrário, subiu a Antônio Augusto, pegou um ônibus na mesma Santos Dumont às duas da manhã e foi para casa, prática comum para quem mora em uma cidade que sabe viver.

Quero sim a civilidade da Domingos Olímpio no carnaval. Senhoras levando cadeiras de casa para ver o desfile, crianças brincando, muitos mundos partilhando um mesmo espaço. Como no pré-carnaval no Jardim das Oliveiras, reunindo o time de futebol e o bloco do bairro com a Escola de Samba Império Ideal: não lhe conheço, não sei quem você é, talvez não nos encontremos nunca mais, mas vivemos juntos e precisamos, você e eu, cuidar de nós mesmos e cuidar da cidade. Sem precisar dizer de quem sou filha, com quem você está falando ou a função que ocupo, sempre provisoriamente. Aliás, outro dado elementar na vida nosso de todo dia: é tudo provisório. Então, deixa passar.

O que muda na cidade em tempo de réveillon, pré-carnaval ou carnaval, que nos faz usar, ainda timidamente, talvez, a máscara do convívio gentil? Sim, a gentileza é um artifício, algo que se aprende, algo que se constrói. Se somos fabricadores e usuários de tantas máscaras, vamos fazer prosperar em Fortaleza a gentileza. Falo por interesse próprio: quero viver bem na cidade.

Cuidar da vida (na cidade/da cidade) é uma tarefa cotidiana, coletiva e sempre renovada. Agora está na nossa mão, por exemplo, desligar a violência do som automotivo. O paredão de som é pago. O silêncio é gratuito. Tem gente fazendo negócio com o nosso silêncio. E criando um lastro de brutalidade, uma espécie de ‘naturalização’ da estupidez de alguns diante do assombro e do incômodo de tantos. Nunca quis isso. Agora, por gentileza, não fico calada.

E pra não dizer que não falei das flores, não arranque flores dos jardins. Melhor do que nós, humanos, elas lidam bem com a morte e sabem a hora de murchar, cair, fenescer. A gente passa, olha, sente o cheiro e segue. Outros passam, olham, sentem o cheiro e seguem...

Se você é fumante como eu, não jogue a cinza nos canteiros. As árvores não fumam. Se por acaso a gente se encontrar e eu estiver pisando na bola (falando alto, tentando escapar da fila, comendo ou bebendo em uma sala de espetáculo etc.), fale comigo mansamente e com firmeza. É como na música: o seu olhar melhora o meu.

Viver com o outro é nosso aprendizado diário. Eu quero aprender!

Desligue o paredão de som, por delicadeza. Fortaleza agradece."

Izabel Gurgel é jornalista e atualmente diretora do Theatro José de Alencar em Fortaleza, Ceará.

O blog Cultura Ciliar pediu permissão à autora deste artigo para publicá-lo na íntegra.

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